« Que fazer? »

  • curador: Óscar Faria
  • Simógrafo, Porto, 2016/17
  • exposição individual:
  • vídeo, desenho, fotografia, performance

“Que fazer?” “Chto Delat?” Perguntava Nikolay Chernyshevsky num livro que surgiu em resposta a “Pais e Filhos”, de Ivan Turgenev. Publicado em 1863, o relato tem como protagonista Vera Pavlovna, que tenta escapar a um casamento arranjado através da conquista da sua independência económica. No argumento inclui-se uma dimensão política: o autor defende a criação de pequenas cooperativas socialistas baseadas nas comunas de camponeses. Escrito na prisão, o romance vai dividir a opinião de leitores como Lenine, Kropotkin e Rosa Luxemburgo, defensores do texto, e Dostoievski, que irá escrever “Cadernos do Subterrâneo” como resposta às ideias utópicas e utilitárias e uma novela de um texto marcado pela crescente industrialização da Rússia.

É contudo com o panfleto “Que Fazer?” (1902), de Vladimir Lenine, que esta pergunta se tornará um tropo ainda hoje a necessitar de resposta. Com o subtítulo “As questões palpitantes do nosso movimento”, esse trabalho inclui este excerto: “A liberdade é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados. A expressão “liberdade de crítica”, tal como se emprega hoje, encerra a mesma falsidade. As pessoas verdadeiramente convencidas de terem feito progredir a ciência não reclamariam, para as novas concepções, a liberdade de existir ao lado das antigas, mas a substituição destas por aquelas. Portanto, os gritos atuais de “Viva a liberdade de crítica!” lembram muito a fábula do tonel vazio.”

A fábula do barril vazio foi descrita pelo poeta Ivan Krylov: dois tonéis, um cheio, o outro vazio, caem de uma carroça. Quando embatem no chão, o cheio faz menos barulho do que o vazio. A metáfora tem o seu eco numa questão política relevante no contexto da época, encerrando uma crítica aos “revisionistas”, que clamavam ruidosamente pela liberdade da crítica, apelo inconsequente porém, porque nulo de ideias. Escreve então Lenine: “Alguns dos nossos gritam: Vamos para o pântano! E quando lhes mostramos a vergonha de tal acto, replicam: Como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor! Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem!”

“Que fazer?”, esta tem também sido a pergunta discutida por dois filósofos, Alain Badiou e Jean-Luc Nancy. Fiquemo-nos por este último, que este ano lançou um livro precisamente intitulado “Que Faire?”: “O tempo urge porque a tarefa é longa... Apanhados num movimento que começou a mover montanhas, os mundos, as forças e as formas à semelhança do que regularmente revolve e remodela o leito dos rios, nós experimentamos uma urgência: a de fazer e de pensar para poder fazer. (...) É preciso mergulhar neste rio que nunca é o mesmo, mergulhando e sentindo o movimento do leito, o movimento das margens, a força da corrente. E tentar guardar o espírito lá longe no mar, aonde o rio chega.”

Foi Ângelo Ferreira de Sousa que verteu estas palavras para português. E é ele que se propõe, nos propõe, pensar a pergunta “Que Fazer?”, título da sua exposição no Sismógrafo, a partir de um pano de fundo com mais de 150 anos. Sem oferecer uma solução para o problema, o autor da mostra revela cinco obras inéditas através das quais se podem encontrar ecos não só das reflexões de Lenine, Marx, Badiou e Nancy, mas também evocações do cinema de Godard – “Pierrot le Fou” –, de Marker – “La Jetée” e de Assayas – “Carlos”. Vídeo, desenho – um mural –, fotografia, performance e tradução são o material a partir do qual se faz a aproximação a esta questão, a que ainda não sabemos responder de forma satisfatória. Declinando o verbo suicidar em português de Portugal e em português do Brasil, sem acordo e em coro; lendo um texto em voz alta, trocando os papéis, os géneros e as línguas; falhando sucessivas tentativas de pôr uma garrafa de plástico a voar, mas insistindo nessa possibilidade de vencer o destino; traçando uma linha de perguntas e de respostas passadas a imagens inscritas numa parede – e esses desenhos são já uma multidão; cantarolar com Karina e Belmondo, em tons de azul e vermelho, papagaio no ombro, em fuga, sempre em fuga: “Que posso fazer? Eu não sei que fazer!”
É preciso portanto mergulhar no rio, combater o pântano. Como escreve Samuel Beckett no fim de “O Inominável”, escrito em 1949: “(...) vai haver silêncio, aqui onde estou, não sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar.” Algum dia saberemos o que fazer?








"Qu’est-ce que j’peux faire? Je ne sais pas quoi faire!", 2016
(Carvão sobre parede. Dimensões variáveis.) A frase francesa “Que posso eu fazer? Eu não sei o que fazer!” é cantarolada por Anna Karina no filme “Pierrot, le fou” de Jean-Luc Godard (1965). Os desenhos foram primeiro encontrados no google images, que transforma qualquer palavra em imagens. Seguindo o acaso da seleção do google, âfs foi desenhado as imagens diretamente do ecrã do computador. O mural resulta de uma sobreposição das imagens resultantes da transformação das palavras que compõem a frase (e que dá título à obra) em imagens. O resultado é uma charada: como ler? como pensar? que fazer?







"La Jetée", 2016 (Fotografia lambda). 70 x 50 cm. “La jetée” faz referência ao foto-filme de Chris Marker (1962). Os terraços do Aeroporto de Orly, Paris, foram durante os anos que seguiram a sua construção o monumento mais visitado do mundo (seguia-lhe a atual líder de visitas turísticas, a torre Eiffel). Os turistas fascinados pela novíssima catedral moderna vinham ver os aviões descolar,num admirável espetáculo moderno. Em 1975, o atentado do terrorista Carlos, o “chacal”, ditou o encerramento dos famosos terraços e fim de um época feliz, que o cantor Gilbert Bécaud imortalizou com na popular canção “Os domingos em Orly” (1963). Os terraços voltaram a abrir já nos anos 2000, depois de serem adotadas várias medidas de segurança. Em 2016, voltaram a fechar para restauro, foram então ocupados por sem-abrigo, que encontraram no local um refúgio quente e abandonado por todos.







"Que fazer?", 2016 Leitura de fragmentos do livro “Que faire?” de Jean-Luc Nancy, performance levada a cabo durante a inauguração da exposição. Tradução: Ângelo Ferreira de Sousa [âfs] Leitora: Júlia Valente









« "Conjugação de um verbo reflexivo" »

  • Paris, 2016
  • Vídeo, 3 x 12’
  • Suicidas: Eduardo Jorge e âfs
  • Câmara: Antoine de Mena
  • Montagem: Antoine de Mena e âfs
  • Som: Jonathan Lucas

Conjugação do verbo “suicidar-se” seguindo a convenção estipulada por Celso Cunha e Lindley Cintra na “Nova Gramática do Português Contemporâneo” (1984).